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Culpa pela gratidão da cura

Sabe quando a gente reclama de alguma coisa trivial, como ter que consertar a geladeira ou o forno, e alguém diz: pelo menos você tem uma geladeira, um forno, e comida para por dentro? Geralmente a intenção é alcançada e a gente se sente mal por reclamar de algo que não é exatamente um problema, só um incômodo (eu falo sempre isso), e de quebra se sente culpada por ter tanto a comida quanto a geladeira. Hoje eu lido melhor com isso, e acho que posso, colocando na perspectiva correta, reclamar quando chove por dias a fio e não posso lavar a roupa. Não estou me comparando com quem não tem roupa, não é uma competição de quem está mais ferrado, é só o que eu estou passando e me dou o direito de reclamar e seguir em frente. Ok, white people problems. Mas tenho que lidar.

E no ano passado tivemos muito isso. De fato, eu sou muito grata por poder trabalhar em casa, fazer o teletrabalho/home office. Mas isso se transformou em uma obrigação, conscientemente ou não, de trabalhar muuuuito, para valer o que eu sou grata, trabalhar por quem não pode, e não deixar ninguém que conta comigo na mão. Também sou grata pela escola do meu filho ter proporcionado ensino online de qualidade, em geral, mas o isolamento dele dos amigos causou danos à sua sociabilidade, sem mencionar a falta de exercício físico, e eu acho que está tudo bem eu reclamar disso e tentar fazer alguma coisa para minimizar, sem perder de vista que o ensino no Brasil teve um retrocesso (está tendo) absurdo com a pandemia porque nem todos puderam ter o ensino online, e teremos de novo uma grande distância entre o ensino público e particular quanto aos efeitos futuros para os alunos.

Atletas sem competição são trabalhadores intermitentes, ou seja, à disposição de quem não precisa chamar para trabalhar, e treinar assim é horrível, eu bem sei, mas minha corrida é pelo meu bem estar, não para sustento, ou seja, posso reclamar, mas só um pouquinho, e muitas vezes em voz baixa. E é isso mesmo.

Então, o que percebo é que vivo a pedir desculpas quando estou insatisfeita (porque é isso, insatisfação) com algumas situações. Eu tive covid. E não foi legal. Só que eu não precisei nem ir ao hospital, quanto mais internar, entubar, etc. E fiquei muito grata, muito aliviada, mas o pós covid traz sentimentos muito confusos, e eu espero não ser mal compreendida neste texto. Não sou uma pessoa gratiluz, deixa dizer. Exercito a gratidão, mas não vivo a ver a maravilha em todas as coisas, embora tenha uma tendência Pollyana de ver o melhor para seguir em frente.

Eu tive dores no corpo, sintomas de sinusite, problema intestinal, e, portanto, desidratação, um cansaço absurdo, perda de olfato e paladar. E foi isso. Nada respiratório, e precisamente 14 dias depois do início dos sintomas, eu me sentia ótima, só o olfato demorou mais a voltar, e voltou. Eu não peguei em aglomeração, festinha nem nada, foi bem caseira e familiar a contaminação, demos azar. Aqui em casa fazemos isolamento rigoroso desde março de 2020 (sim, porque podemos, então é o mínimo a fazer por quem não pode), e chegamos a passar semanas inteiras sem ligar o carro. Este ano demos uma aliviada com o retorno das aulas do Arthur, mas todos os dias eu sofro quando levo ele para o colégio e quando busco e passo no mercado. Muita tensão no mercado e na hora de buscar o almoço, porque este ano vi que não daria conta de cozinhar sempre. Isso já foi algo que tive que trabalhar seriamente.

Porque na minha cabeça muita coisa ficou diferente. Eu fiquei medrosa. Primeiro, veio logo esse negócio de recontaminação, e o prazo cada vez menor de imunidade. Viajamos logo em seguida, e já voltamos nervosos. Depois as variações, todas piores, todas horríveis, e fico martelando que já tive minha dose de sorte. Meu filho até hoje não sabemos se teve covid, porque se teve, foi assintomático, mas agora crianças também tem sintomas nas novas variantes. E tem muito a questão das seqüelas, que ninguém sabe direito. Depois que eu tive, cada treino de corrida que me falta fôlego, eu já penso que pode ser efeito tardio do covid, que na verdade perdi capacidade cardio respiratória e não sei, e deveria fazer exames para ver, e isso toma a minha mente até o final do treino. Cada vez que alguém sente um cheiro que eu não sinto, a mesma coisa. Já sei de gente que teve labirintite como sequela, então se sinto tontura, já era. Queda de cabelo tem sido relatada, e por mais que eu saiba que em mudança de estação sempre perco cabelo, quando cai aquilo tudo no banho, me dá uma aflição muito acima do razoável. Mulheres estão relatando perda de controle para urinar, incontinência. E eu tenho vontade de fazer xixi quando corro mais forte, então toda vez isso vem à cabeça. Massa, né?

E tem a culpa. De ficar pensando nisso, de sentir o que sinto, quando tanta gente perdeu pessoas amadas, da família ou não. Quando tanta gente está esperando notícias dos seus familiares todas as manhãs, e passando o resto do dia sem saber como vai ser. Quando tem gente esperando leito em UTI, ou mesmo na enfermaria, e muitos não conseguindo. Me questiono se tem a ver comigo e meu estilo de vida, minha imunidade cuidadosamente trabalhada, que me permitiram ter uma recuperação ótima e sintomas leves, ou se foi só sorte, ou ambos (o mais provável). Cruel julgar os sintomas e pioras de uma pessoa pelo que ela faz ou é (idosa, obesa, diabética, asmática). E tem gente parecida comigo, com menos de 50 anos, que eu acho que tem o estilo parecido, ficando mal. E idosos ficando super bem. Isso dá o sentimento de que acabou o "critério de escolha", é todo mundo e ninguém, o que eu achei que fosse deixar mais gente preocupada, mas não necessariamente. E quanto mais eu penso, mais quero me isolar e não correr o risco não só de pegar de novo, mas principalmente de passar para alguém. Quando eu tive, era só nisso que pensava: não posso passar para ninguém. E eu vejo que tem gente que não ocupa nem um minuto do seu dia pensando nisso, porque só assim posso tentar entender quem vai para uma festa com 30, 40 pessoas, e depois vai visitar os pais, ficar com colegas de trabalho (mesmo tendo opção de trabalhar em casa), e já com alguns sintomas, acha que não precisa avisar ninguém com quem esteve de que talvez esteja doente e a pessoa também. Mas vejam, já estou julgando, e isso também não me parece legal.

Eu não me preparei para meses de 2021 isolada. Acho que não sou a única. Como boa virginiana, na hora que organizei a vida em torno do que se apresentou, criei um limite temporal mental para o fim dessa nova rotina, e depois teria o retorno ao "normal". Então eu me vi estranhamente surpresa por estar tudo não igual, mas pior em termos de doença e mortos, em março de 2021, e as pessoas me dizerem que estão "de saco cheio". Recalculando a rota de novo. Até quando? A notícia não é boa, pessoal: não tem normal. Nem novo nem velho. Tem adaptações, tem agora já a facilidade de quem já está trabalhando em casa e o esquema montado. Tem o bizarro abismo entre quem pode ficar em casa e não fica porque "cansou", e acha que isso é justificativa suficiente, e quem não pode ficar em casa porque precisa muito trabalhar e a única opção é fora. No ápice dessa diferença brutal estão as mães que tinham empregos e não puderam fazer teletrabalho, e com os filhos sem escola, não puderam sair para trabalhar, e ficaram desempregadas. No meio desse funil ainda temos as mulheres que puderam ficar em teletrabalho, e isso significou morar no trabalho e ter que dar conta de filhos, casa E trabalho, às vezes com um companheiro, muitas vezes solo, ou com um companheiro que tem que sair para trabalhar.

O que está acontecendo conosco aqui em casa é que passamos da fase de ficar "de saco cheio" de não sair. Nós realmente já não queremos mais sair. Até que ponto isso será bom? De certa forma é muito interessante esse exercício de inventar algo e acostumar a estar em casa, juntos, sem ter necessidade de outros ambientes. Mas sempre gostamos de sair para comer em restaurante, e se em 2020 tivemos muitos domingos depressivos por não ir, agora estamos muito à vontade em ficar em casa e comer descalços e sem produção. Desacostumamos à produção e o dinheiro investido nisso outrora, foi para equipamentos de informática, câmera, ring light, plano melhor do zoom, e livros, muitos, muitos livros.

Estou cada vez mais no casulo e com a necessidade de exercer minha função social da melhor maneira possível, não sei se como forma de agradecer por estar bem, por perceber que deve haver um propósito em eu estar bem e outras pessoas muito incríveis, não.

Espero que mais gente se identifique com a espiral que descrevi, para saber que não estamos sós, e que vamos ter trabalho para botar os parafusos de volta no lugar. E que cada um encontre sua forma de passar por isso, sem negacionismo, confiando na ciência, desconfiando de quem acha que sabe tudo sem ser do ramo, comprando do pequeno sempre que puder, do fornecedor que alimenta a economia da sua região, trazendo compras para o vizinho idoso se puder. Mais uma vez, eu sinto muito pela perda que quem me lê possa ter sofrido, e pelas sequelas, e por todo o sofrimento. Não vale a pena perguntar "por que comigo?" nem para o bem nem para o mal, mas "para que" pode ser útil. Para ter mais empatia, para saber que tem que dar um tempo, para ver que não é imortal nem infalível, para produzir para os outros e pelos outros, para valorizar a saúde, para valorizar o tempo que tem com quem ama, para não perder a oportunidade de dizer que ama, para achar sua companhia interessante, já que é com ela que você fica até o fim, para descobrir que com mais de 30 anos festar não pode ser a prioridade, mas também para não julgar quem não suporta ficar só e não sabe como lidar com isso.

Seguimos.



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